Publicado em 8/7/2022 na REVISTA INTELIGENCIA
“Adoramos a perfeição, porque não podemos a ter; repugná-lo-íamos, se a tivéssemos.
O perfeito é desumano, porque o humano é imperfeito”
Fernando Pessoa
Estava numa mesa de jantar, na casa de amigos, quando levantei o tema da minha admiração por uma jovem parlamentar. Fui surpreendido pela reação negativa ao meu comentário, vinda de mulheres à mesa.
Pensei: Como pode uma jovem de periferia, que conseguiu vencer as limitações do seu meio, foi aceita por Harvard e depois chegou ao Congresso Nacional, ser tão mal avaliada por mulheres a quem deveria representar? Fiquei chocado. Felizmente uma mulher, nascida no seio de uma família muitíssimo rica, e que se dedica franciscanamente, há décadas, a um projeto social de educação, em uma das maiores favelas de São Paulo, falou:
“Eu quero conhecê-la e vou lhe dar um livro chamado ‘Humanidade’, de Rutger Bregman.”
Naquele momento senti que estava diante de uma nova descoberta – afinal, havia muita certeza e convicção na face daquela jovem senhora.
Cresci com a percepção de que, na nossa civilização, o futuro é sempre visto como distópico, reflexo da projeção de que somos fadados à autodestruição. O exemplo que costumo trazer vem da indústria do cinema. Não me lembro de qualquer filme, de grande bilheteria, que fale de um futuro brilhante. A começar por “Metropolis”, de Fritz Lang, podemos citar “Blade Runner”, de Ridley Scott, “Mad Max”, “Terminator” e outros, além de “Back to the Future 2”, no qual o Biff é vitorioso.
O livro “Humanidade” busca demonstrar, através de um conjunto de experiências e pesquisas, que a natureza humana é generosa e colaborativa.
Um conceito que se torna claro quando se imagina que um ser frágil, sem casca, sem pelos, sem garras, cujo ciclo de amadurecimento é o mais longo dentre os mamíferos, não teria como sobreviver na Natureza sem uma capacidade ímpar de generosidade e solidariedade entre os seus.
Rutger Bregman “nada contra a correnteza” ao denunciar Maquiavel, Hobbes e Freud, entre outros, que moldaram a cultura ocidental com a visão de que somos predominantemente egoístas.
A mensagem de Bregman é importante e necessária nos tempos atuais, quando vemos crescer um discurso de intolerância travestido de liberdade de expressão; um armamento exagerado da população, justificado pela necessidade de defesa da propriedade e da integridade física; e mentiras oficiais legitimadas pelo sagrado direito da liberdade. Um tempo no qual alguns se esquecem que a liberdade e o direito de um indivíduo terminam onde começa o direito do próximo.
Em “Humanidade”, o leitor é estimulado a refletir sobre a visão de David Hume (séc. XVIII), que acreditava que a história tinha como principal função descortinar os princípios constantes e universais da natureza humana.
Rutger instiga o leitor a pensar por que, em momentos de tamanha crueldade, vítimas foram capazes, ao longo dos tempos, de manter a crença de que as pessoas são fundamentalmente boas. Sabemos de muitos exemplos disso na história de sobreviventes do Holocausto.
Fica evidente, no livro, que existem razões maiores para que sejamos capazes de, como dizia Spinoza (séc. XVII), “rir e entender atitudes humanas, em vez de chorar ou odiar”.
Na sua provocação maior, Rutger enfatiza que o verdadeiro realismo é ser idealista, e questiona por que o realismo virou, no mundo moderno, sinônimo de cinismo.
A História da Humanidade é a prova de que existe uma propensão imensa em fazermos o bem uns aos outros. Se não fosse assim, não teríamos chegado aonde estamos.
O projeto humano deu certo. Se aplicarmos a curva de Moore, usada para a adoção de novas tecnologias, à evolução da população do planeta, notamos que ela se ajusta perfeitamente. Hoje já atingimos 7 bilhões de seres humanos, e a inflexão exponencial ocorreu na virada do século XX.
Provavelmente está, no sentimento de “Humanidade”, a razão pela qual, nas favelas do Brasil, a pandemia da Covid-19 não foi devastadora. Ao longo dos séculos, em todo o planeta, não nos faltam exemplos de resiliência: nos alagados de Salvador, na base do Kilimanjaro, nas montanhas do Himalaia, nas profundezas do Vale do Javari, no massacre cultural do Tibet e em tantas outras situações extremas e de extremismos.
Cabe a cada um de nós ter a coragem de ser fiel à sua natureza, e confiar nos outros, como uma criança confia em outra criança.
Cabe a cada um de nós combater o perverso à luz do dia, através de nossa generosidade desavergonhada.
O preço de tal atitude é sermos taxados de ingênuos e/ou de crédulos. Porém, o que temos a perder? O prejuízo é sermos chamados de “humanos”? O livro “Humanidade” reforça a minha crença, que expus num artigo anterior, “O ódio que nos separa, e a resposta que lhe cabe”, publicado em 29 de maio de 2022, no Brazil Journal:
“Devemos retribuir um xingamento apenas com o desprezo silencioso, responder à notícia falsa do WhatsApp com verdade e candura, ter paciência e generosidade contra o cancelamento, lembrar da oração de São Francisco ao nos depararmos com a raiva e, contra um tapa no rosto, dar a outra face.”
Comments