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Na foto de McCartney o destino americano de Lennon.

No auge de sua inspiração para criar músicas e enlouquecer fans, o jovem Paul pode ter percebido que, ao tirar aquela foto, estava capturando um pouco do espírito maior da América


John Lennon, ao lado de George Harrison, pelas lentes de Paul McCartney. Foto: Paul McCartney/National Portrait Gallery


Depois de uma longa reforma, a National Portrait Gallery, em Londres, reabriu neste mês de junho de 2023. A exposição principal é de fotos tiradas por Paul McCartney, nos anos 1963-1964, quando ele era um jovem músico de uma banda promissora chamada Beatles. As fotos, típicas de um amador, registram os primeiros anos da banda que mudou o mundo e os costumes.


Nesse conjunto de fotos vemos aquelas tiradas na primeira viagem dos Beatles aos USA, em 1964. Fotos da cosmopolita Nova York e da ensolarada Miami, que devem ter deslumbrado aquele quarteto vindo da névoa de Liverpool.


Uma foto, porém, prendeu minha atenção: mostrava a “lateral” - da cintura até a coxa - de um policial americano, sentado em uma moto. Ela destoava de todas as demais, e me intrigou. Como algo tão irrelevante, perto das demais fotos, poderia ter sido escolhido para estar ali? Era a única foto que não registrava a face de um amigo, uma situação do conjunto, um grupo de fans, ou ainda o deslumbre dos americanos pelos reis do ie-ie-ie.


Para um jovem britânico dos anos 60’s, acostumado com os guardas munidos apenas de cacetetes, aquela foto representava, provavelmente, a maior surpresa ou a imagem mais estranha naquele país, chamado de “terra da oportunidade”. Da mesma forma que Caetano Veloso, anos depois, escreveu que “Narciso acha feio o que não é o espelho”, olhando para a fumaça que subia apagando as estrelas em São Paulo, o jovem Paul fotografou uma arma na cartucheira em um cinto de balas, na cintura de um guarda de rua.


Policial armado em Miami em 1964, na ótica de Paul McCartney: "Foi um pouco chocante para nós vermos uma arma na vida real". Foto: Paul McCartney/National Portrait Gallery


Não consegui me mover quando vi a foto porque, imediatamente, veio à minha mente um dos melhores livros sobre a conquista das Americas: “Guns , Germs and Steel” de Jared Dimond (1998). O livro analisa como esses 3 elementos garantiram, no continente americano, o domínio dos europeus sobre as avançadas culturas milenares que o habitavam.


No seu livro subsequente, “Collapse”, o mesmo autor mostra como a chegada do europeu significou o fim do mundo, na ótica dos povos originários. Processo apocalíptico muito bem descrito e atualizado, pois ainda continua em andamento em toda a América do Sul, como nos mostra a obra de Ailton Krenak, testemunha eloquente da dor profunda de quem vem sendo atacado no direito de existir. Processo apocalíptico que experimentamos com o evento da COVID, cujo combate ainda causou polêmica, mesmo depois de 5 séculos de experiência de como os germes agem como agentes exterminadores dos povos originais nas Américas.


Fim do mundo para uns, e construção de um novo mundo para outros. Nesse “novo mundo”, armas parecem ser um pilar relevante, seja no país mais rico da América do Norte ou nos bolsões de pobreza da América do Sul.


Armas de fogo são exportadas pela América, “por dentro e por fora”, para todos os cantos do mundo. Armas de fogo, que supostamente deveriam nos proteger, ameaçam comunidades e até crianças em escolas. Como se fossem obras de arte, são penduradas em paredes por quem não sabe o que arte significa.


Exposição na National Portrait Gallery ilustra o olhar de estranhamento do jovem Paul McCartney sobre América dos anos 1963-1964. Foto: Paul McCartney/National Portrait Gallery


No auge de sua inspiração para criar músicas e enlouquecer fans, o jovem Paul pode ter percebido que, ao tirar aquela foto, estava capturando um pouco do espírito maior da América. A terra da oportunidade era a terra da violência, assim como a terra da “bossa nova”, ao sul do Continente, também o é.


O que o rapaz de Liverpool não sabia é que, anos depois, seu maior parceiro seria assasinado na porta de casa em NY, sem qualquer razão aparente, com um tiro de revólver disparado por um “João Ninguém”. Nenhum dos guardas de rua, fortemente armados, pôde impedir a morte de John Lennon.


Nas Américas, alegam muitos, arma de fogo faz parte das liberdades individuais. Esquecem, porém, que a liberdade advém de um pacto social de se respeitar o próximo como a si mesmo.


Ao sair da National Portrait Gallery vi uma foto imensa de John Lennon, e pensei que a razão para seu assassinato pode ter sido a ousadia de escrever versos como:

“Imagine there's no countries

It isn't hard to do

Nothing to kill or die for

And no religion, too.”


Nunca saberemos o motivo porque, nas Américas, as discussões ainda são ganhas no grito ou no berro. Talvez, e não por coincidência, “berro” é que um dos apelidos de arma de fogo no Brasil.


PS. Em homenagem a mulheres como Ilona Szabo ( Instituto Igarape) e Joana Monteiro ( FGV-EBAP) que cantam como dobra o sino sobre a importância fundamental de politicas publicas de segurança.

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