Nasci em 1961, em um areal chamado Leblon. Naquele tempo, o Leblon era o lugar mais distante da cidade do Rio de Janeiro.
O Brasil era o "país do futuro", que começava a desabrochar. Em 1960, trocamos a capital do Império pelo modernismo de Brasília, no meio do Planalto Central. Era o ápice do projeto português de construir uma nova China, idealizado no século XVI.
Em terras brasileiras, por 300 anos, não era permitido ter Universidades nem editoras de livros. No entanto, voto municipal, província, etc... era prática comum, desde o início da colonização. Brasileiros podiam, inclusive, votar em eleições portuguesas. Uma tremenda contradição, mas a tradição do voto está em nossas mais profundas raizes.
Com a chegada da Corte, e depois a Independência, o Congresso Nacional foi estabelecido, tornando-se o terceiro mais antigo do mundo, em operação ininterrupta. Nosso Congresso perde, em longevidade, apenas para USA e UK.
As Instituições do voto e da representação parlamentar são sólidas, e fazem parte da nossa cultura. Já tivemos todo tipo de Presidentes - e até Imperadores, mas essas Instituições se mantiveram vivas, operantes, e a população votante só aumentou com o tempo.
Naquele Rio de Janeiro do tempo que nasci, o cheiro de maresia era forte, víamos poesia no morro, as pessoas andavam como se estivessem cantando "Chega de Saudade" com seus passos, e bastava um violão para se ser feliz, à noite, na praia.
O Rio era a cara do Brasil que, naquela época, ensinava ao mundo como jogar futebol, como fazer jazz com a bossa nova, que maiô tinha duas peças, que a arte era concretista, que móveis de madeira podiam ser intelectualmente sofisticados, e que a arquitetura deveria expressar a natureza. Essa imagem, tão forte, marcou o que o Brasil significa, no planeta, para todo o sempre.
Passados 60 anos, o prédio onde nasci, na Rua Dias Ferreira, ainda continua lá, sendo um dos poucos sobreviventes. Há muito tempo, o Rio se moveu para frente, e o ponto mais distante foi pela Barra da Tijuca adiante.
O cheiro de maresia não é mais forte, o morro perdeu a poesia, e as pessoas andam na rua com medo dos bandidos e da polícia.
A cara do Brasil, hoje, tem uma cicatriz imensa, percebida por todo o mundo.
Quando eu era pequeno, tínhamos nossas bicicletas roubadas pelos meninos da Cruzada - no entanto, íamos lá resgatá-las, quase que como um sequestro.
Na minha adolescência, via pessoas próximas encomendarem peças de carro, principalmente toca-fitas, na "Robauto". Não acreditava que as pessoas incentivavam a prática do roubo do carro / equipamento. Todo mundo fazia sua "fezinha" no jogo do bicho, disponível em cada esquina. Tudo de ilegal era relativizado e aceitável, além da festa maior, de bagunça geral, chamada Carnaval. Assim seguia a vida.
Em certo ponto, criminosos viraram patronos beneficentes, heróis de bairros, e o poder público teve de negociar com eles. A sociedade aceitava com naturalidade o inaceitável. Uma bola de neve foi se formando, em que todo mundo era bandido, todo mundo era vítima, e todo mundo era cúmplice.
A frase do bandido Lucio Flavio, "Bandido é Bandido, Polícia é Policia”, ficou famosa pela coragem e ética, tão rara neste Rio que se perdeu. Pensando assim, foi morto.
A cidade que Pereira Passos modernizou, inspirado em Haussman (o autor do projeto diretor de Paris), deixou de ter rumo. Nenhum projeto de atacar seus problemas mais profundos, como transporte, por exemplo, jamais existiu até o momento. Na falta do Estado, uma parte substancial da cidade foi se adaptando e se moldando, durante estes 60 anos.
No livro ”A Republica das Milicias”, Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador da USP, foi fundo na formação e estrutura das milícias do Rio.
O livro resulta de um trabalho apurado, detalhado e com rigor.
No final, descreve como governantes cariocas, por vias tortas, terceirizam o controle de áreas carentes da cidade para grupos privados, da mesma forma como o Rei de Portugal criou as Capitanias Hereditárias, para tercerizar a colonização do Brasil.
Nao vou dar "spoiler", mas porque é importante lê-lo?
(1) o Rio continua sendo a nossa face mundo afora, e o que acontece no Rio um dia chega ao país todo. Sem consertar o Rio, não existe saída para o Brasil;
(2) deixo, nas palavras do autor, um trecho da pag 129:
“A Valorização dessa autoridade orgânica e informal, criada na linha de frente, no exercício do poder na rua, longe dos gabinetes com ar-condicionado, que menospreza as hierarquias e formalidades legais, tornou as corporações policiais incontroláveis. Essa rede, para continuar forte e mobilizada, precisa fazer dinheiro e descobrir oportunidades de negocios. Sem dinheiro não há poder, um problema que a criação do modelo miliciano soube resolver. Em 2018, a eleição de um governador e de um presidente que representam em muito aqueles que veem o mundo de dentro de subterrâneo ruinoso mostrou aos paramilitares que eles tinham chegado mais longe do que imaginavam. Os controles formais, a Constituição, a democracia, não passavam de entraves para o poder dos mais fortes.”
Quando nasci, Ipanema e Leblon inspiravam o mundo pelo ideal de um paraíso terrestre. Hoje, porém, temos Rio das Pedras, entre outros lugares cariocas, que funcionam como campos de prova do anti-contrato social. A solução é um remédio antigo e tradicional, como todo bom remédio: voto e democracia representativa. Não existem atalhos.
Trabalhos profundos como o de Bruno Paes Manso trazem a esperança que, escancarando a ferida, é possível a cura.
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