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Do Homem do Sapato Branco ao Anuário do Forum Brasileiro de Segurança Pública de 2022: a vida como e

Atualizado: 29 de jul. de 2023

No alto da porta de entrada do apartamento ficava uma estatueta de Cosme & Damião, com doces e um copo de Guaraná Antartica. Nos meus 4 anos de idade, a vontade de pegar os doces dos Santos era imensa, mas não os conseguia alcançar. Era a casa da prima Sueli na Lapa, centro do Rio de Janeiro, e a televisão ligada anunciava a Sessão Coruja no recém inaugurado canal Globo.


Naquela noite de calor abafado, em 1965, meu pai estava se preparando para pegar um ônibus para São Paulo, pois lá começaria um novo emprego. A prima Sueli dizia que ele não deveria ir, porque São Paulo era muito longe. Minha mãe, aos 23 anos, tinha um olhar assustado, e carregava minha irmã de 1 ano de idade nos braços.


Num determinado momento, a cozinheira entrou na sala, colocou as mãos na mesa, fez um barulho estranho com a boca, revirou os olhos, olhou para meu pai e disse, com uma voz masculina e cavernosa: “o que vós quereis?”


Meu pai, que era católico praticante, pegou a mala e saiu sem ao menos se despedir de nós tres.

Essa imagem está impressa em minha memória, compondo um quadro do Rio de Janeiro onde nasci. A memória me leva à

uma infância com procissões de São Sebastiao ou dos Capuchinhos se misturando com macumba, curandeirismo, crendices e miséria.


Lembro de sentir calor extremo e cheiro de maresia. Lembro do sotaque carregado do português de Portugal por todos os lugares. Lembro de ter medo de polícia e dos militares. Medo, receio e insegurança.


Medo, especialmente, da propaganda do “Homem do Sapato Branco”, que nunca mostrava o rosto do personagem. Sua voz grossa e assustadora já anunciava que não era um programa para crianças. Nunca o assisti, mas não esqueci a voz do locutor do “reclame” (nome de propaganda da época).


O escritor Mauricio Stycer acaba de lançar um livro contando a historia de Jacinto Ferreira Júnior, o criador do programa “o Homem do Sapato Branco”. Lendo-o, reconheci que meu instinto de moleque estava certo: definitivamente não era um programa para crianças.


Jacinto foi o inventor do gênero de programas de TV que explora temas escandalosos, tais como ritos religiosos, grandes feitos da medicina, dramas sociais, “barracos” em geral (falsos, em alguns momentos), e todo tipo de bizarrice.


Em um país elitista como o Brasil, embora a TV fosse algo para muito poucos (não mais que meio milhão de aparelhos), Jacinto soube fazer um programa baseado no gosto das pessoas pelo chamado “mundo cão”.


Apesar do alto alcance do programa, havia dificuldade de achar patrocinadores dispostos a se envolver com esses temas. Na visão de Jacinto, o que ele fazia podia ser descrito assim: “o que não é ‘mundo cão’ neste mundo? Há fome, miséria, opressão. Por acaso não é ‘mundo cão’ saber que, a qualquer momento, um maluco pode apertar o botão de uma caixinha preta do Departamento de Estado americano, e acabar com a nossa brincadeira de viver? Não peço a ninguém para assistir o meu programa. Assistem meu programa aqueles que não têm medo da miséria porque convivem com ela, porque fazem parte dela”

O Brasil é cheio de histórias onde a crendice e a pobreza se entrelaçam com dramaticidade, arrastando multidões. Fenômenos como Antônio Conselheiro em Canudos, Padre Cícero no Crato e, recentemente, João de Deus em Abadiana-GO, mostram-nos que desespero, desesperança e violência andam juntos.

O tema da violência é corriqueiro. Muito criticados, programas de TV como Cidade Aberta, Brasil Urgente, Raul Gil, Cadeia sem Censura, Aqui e Agora, e tantos outros, não passam de releituras do programa do Jacinto na década de 60. O tempo passa, o tema continua vigoroso, e o mercado publicitário, que negava apoio a tais programas nos anos 60’s, há muito se rendeu aos encantos da audiência.


Como Jacinto nos ensinou, quem vive a miséria não tem medo dela. Um pequeno recorte do “Anuário do Forum Brasileiro de Segurança Pública de 2022” descortina a razão desse apreço nacional pelos temas da violência.

Seguem alguns dados:

⁃ 75.000 casos de estupro foram notificados com boletins de ocorrência. Segundo pesquisa do IPEA, estima-se que apenas 10% dos casos são relatados - logo, potencialmente, ocorrem 750.000 estupros por ano no Brasil;

⁃ Por faixa etária, 76% dos casos envolvem menores de 14 anos de idade. Destes 76%, 18% são crianças de 5 a 9 anos, e 10% vitimam bebês até 4 anos;

⁃ Por sexo, 89% dos estupros ocorrem em mulheres;

⁃ Por raça, em 57% dos casos, as vítimas são pretos e pardos;

⁃ 83% dos abusadores são conhecidos das vítimas;

⁃ Na faixa etária abaixo de 14 anos, 64% dos estupros são perpetrados por familiares;

⁃ Acima de 14 anos, 14% dos casos envolvem parceiros e 10% ex-parceiros - ou seja 1/4 (25%) dos abusadores estão ou estiveram envolvidos emocionalmente com suas vítimas. Ainda nessa faixa etária, 38% dos estupros são cometidos por familiares, e 15% envolvem conhecidos. Apenas 23% das vítimas com mais de 14 anos não conhecem seus estupradores.


Nao vou falar de latrocínios e outros crimes. O drama dos estupros acontece dentro de casa, perpetrados por pessoas próximas, durante o luz do dia, e a uma taxa assustadora de 86 casos a cada hora.


A estatística acima nos remete aos textos que tanto sucesso fizeram nas colunas de jornal da década de 50. Chamados de “A vida como ela é“, e escritos por Nelson Rodrigues, abordavam todo tipo de tara sexual. Assim como as estatísticas atuais mostram, o autor sabia o que escrevia. Nelson, um conservador declarado, conhecia os “reais valores da tradicional familia brasileira” tanto do Brasil daquela época como do Brasil de hoje.


Em plena ditadura militar, por várias vezes a censura suspendeu Jacinto, ao não aprovar a forma sensacionalista com que ele abordava os desequilíbrios sociais. Como deputado que nunca apresentou um projeto, foi cassado pelo AI-5 por atividades subversivas - atividades essas que nada mais eram do que usar seu gabinete para trazer pessoas e fazer seu populismo. Nem um pouco diferente do que vemos hoje com os seus “pupilos” da TV, que enchem o Congresso Nacional e Câmaras Estaduais com suas “lives” e a tentativa de democracia direta. Sempre sob a bandeira do Conservadorismo.


O mais importante é observar que todos que “vestem o sapato branco” continuam a se aproveitar da miséria e da violência que está dentro dos nossos lares.


O armamento da população comumente evocado, por exemplo, não resolve um dos nossos maiores problemas de base: os estupros superam em mais de 10 vezes os assassinatos.


Políticas públicas devem ser feitas pensando na miséria que aflige as pessoas, atacando suas causas a longo prazo. Os programas do “mundo cão” continuarão a existir porque são o efeito e não a causa.


A pergunta que fica é:

O que, aos que se dizem conservadores, o Conservadorismo busca conservar? Conservar “a vida como ela é“, conforme escancarava o conservador Nelson Rodrigues, corroborada pela estatística do Anuário do Forum Brasileiro de Segurança Pública de 2022?


Eis a nossa grande questão.








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