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Das dunas do Catar, o vôo do Pombo pode ir além do Hexa

Publicado em 26/11/2022 no HEADLINE IDEIAS


O estudante de medicina usava cabelos compridos e barba longa, naqueles idos do início da década de 70. Os jovens eram hippies, mas isso não era permitido a um jogador de futebol.


O nome dele era Afonsinho. Por sua chamada rebeldia, foi “emprestado” pelo Botafogo para o Olaria, como um castigo por questionar o sistema de passe que prendia o jogador ao clube, numa quase escravidão aos moldes dos gladiadores da antiga Roma.


Naquele tempo, o máximo de rebeldia que se observava nos campos de futebol eram camisas fora do calção e meias arriadas. Afonsinho desafiou todo o sistema quando entrou na justiça contra o Botafogo, pelo direito de ir para um outro clube. Afonsinho foi “alforriado” em 1972, ao ganhar na justiça o seu passe livre. Porém, sua carreira já estava abalada para sempre, pois passou a ser visto como o maior dos “indisciplinados”, em linguagem da época.


Na década seguinte, em pleno Brasil que clamava por “Diretas Já”, surgiu um outro médico, também nascido no interior de São Paulo como Afonsinho, que criou o maior movimento político da história do futebol brasileiro: a “Democracia Corinthiana”.


Socrates, um craque que jogava de cabeça erguida, liderou um processo pelo qual seu time, com uma tradição de conservadorismo, passou a permitir que os jogadores fossem ouvidos em contratações, distribuição de bichos, períodos de concentração, … através do voto.


A “Democracia Corinthiana”, assim como a briga pelo passe livre, foram momentos em que o futebol desafiou em plena ditadura os costumes.


Dr. Sócrates e Dr. Afonsinho não representavam o jogador de futebol “típico”, pois tinham um nível de instrução elevado e origem na classe média. Ambos movimentos não eram bem vistos pela grande maioria dos torcedores de futebol, pois questionavam o modelo do jogador “bom menino, humilde e escravo” de um sistema no qual o clube e dirigentes detinham o destino de pessoas nas mãos.


Não existe um histórico de jogadores de futebol abraçando campanhas políticas no Brasil. Jogadores como Pelé, Zico, Falcão, Ronaldo, Ronaldinho, Romário, dentre outros, passaram pela carreira sem entrar no campo da política. Alguns deles, depois de aposentados, usaram a fama para se eleger vereadores, deputados e senadores.


Nas eleições deste ano, a adesão de Neymar Jr. à candidatura do presidente em exercício foi um ato inédito, e nos obriga a um questionamento relevante: embora seja seu direito inquestionável, óbvio, como o mais importante jogador da seleção brasileira, às vésperas de um Copa do Mundo, pode escolher um “lado”, em um país dividido pela política?


Camisa canarinho


Como um ritual, as famílias brasileiras se reúnem todo ano no Natal, e a cada 4 anos para assistir aos jogos do Brasil na Copa do Mundo. A atitude de Neymar tem impacto sobre a maioria dos brasileiros, uma vez que não estamos habituados a misturar política com futebol. Ao mesmo tempo, muitos de nós também duvidam se a camisa canarinho continua a representar a Nação de chuteiras, ou se virou símbolo de um partido político. A “coisa” é tão grave que vimos cenas nas quais as bandeiras do Brasil, estendidas em janelas, traziam dizeres: “é pela Copa”. Uma confusão sem precedentes.


Porém, o destino sempre prega surpresas em Copas do Mundo. Em 1958, 2 jogadores não titulares (o menino Pelé e o perna-torta Garrincha) mudaram nosso destino de eternos quase campeões. Já em 1962, o possesso Amarildo substituiu o génio Pelé, que tinha se machucado, para arrancar o bicampeonato no Chile, e sepultar o “complexo de vira-lata” diagnosticado por Nelson Rodrigues. Nesta Copa do Mundo, acredito que estamos às vésperas de termos uma outra surpresa, que já se desenhou no primeiro jogo do Brasil: o brilho de estrela do jovem capixaba Richarlison.


Richarlison, aos 25 anos, é um jovem que, sem medo de expressar sua visão de mundo através das mídias sociais, busca fazer de sua fama uma arma para causas sociais. Dentre as causas que defende, podemos citar o incentivo à vacina, a proteção do meio-ambiente, o racismo, e qualquer questão que diga respeito à sua experiência de infância pobre no interior do Brasil.


Nas palavras dele, em uma entrevista para a ECOA UOL:


“Enquanto puder fazer algo pra mudar meu país para melhor, eu vou estar aqui pra colocar a boca no mundo e gritar mesmo.”


Chega a ser paradoxal que, justamente numa Copa do Mundo marcada por questões de misoginia e desrespeito aos direitos humanos, surja uma nova voz como essa no futebol.


Afonsinho, Sócrates e Richalison são “feitos do mesmo material”, e cada um defende a causa do seu tempo. Hoje, as causas de Afonsinho e Sócrates não fazem mais sentido - afinal, a atual condição de jogador de futebol é excepcional, quando comparada com a dos anos 70/80.


Richarlison, fruto deste novo momento, é o típico jogador de futebol criado no Brasil profundo, onde a probabilidade de ascensão social é quase nula. Sua representatividade e, portanto, sua capacidade de induzir ao bom comportamento, são imensas.


A causa que move Richarlison é a melhoria da condição humana, a tentativa de minimizar as mazelas da miséria. Vejo que a Copa de 2022 pode torná-lo um exemplo que arraste milhões de brasileirinhos para fora da mediocridade e futilidade que, na última década, vem inspirando novas gerações.


Como dizia o compositor Gonzaguinha com seu punho levantado como o Dr. Sócrates, a camisa totalmente aberta como o Dr. Afonsinho, e a coragem de denunciar as injustiças da vida como Richarlison:


“Fé na vida, fé no homem, fé no que virá

Nós podemos tudo, nós podemos mais”



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