Meu quarto era pequeno. Cabia uma cama de solteiro, sem cabeceira, com um colchão duro, semelhante às camas de cárcere de frades franciscanos. No espaço restante, uma prancheta de estudos espremia-se com 2 estantes de ferro, abarrotadas de livros. Da janela, eu via a Praça Nossa Senhora de Paz e a Lagoa. Na parede, tinha um poster do filme “Di”, sobre o velório de Di Cavalcanti, filmado de forma anárquica por Glauber Rocha.
O simbolismo do poster no meu quarto denotava minha admiração por Glauber, por Di e pela atitude mercurial de Rocha, que levou o filme a ser interditado pela família do grande pintor e amigo de Glauber.
Glauber era o herói da minha adolescência, por propor uma estética nova, engajada e revolucionária, contra tudo e todos, inclusive ao afirmar que as cores da Kodak não podiam retratar os trópicos. Uma camera na mão e uma ideia na cabeça.
Foi nesse quarto, lotado de livros de teatro contemporâneo e grego clássico, e roteiros de filmes que, em 1981, recebi a notícia da morte prematura de Glauber, aos 42 anos.
Glauber cumpria o destino dos poetas românticos, tais como Castro Alves, que morriam cedo, tuberculosos ou algo similar. Vida jovem, ceifada por uma causa.
No final daquele ano, com uma mochila nas costas, fui me aventurar, pela primeira vez, na Europa. Na volta da viagem, comecei a trabalhar junto com os estudos, e assim começava minha vida adulta.
O sonho do cinema Novo, e as lembranças de seu cavaleiro andante, já morto, ficaram na minha memória como um movimento efêmero, e algo que só se justificava pela minha ingenuidade de “rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, e sem parentes importantes”.
Recentemente, ao rever meus filmes de Super8, eu me deparei com cenas gravadas diretamente da televisão em 1979. O programa chamava-se “Abertura” e era transmitido na sexta-feira ou no sábado, tarde da noite, pela Band.
Neste programa, Glauber, usando uma técnica tosca e recursos precários como máscaras e filmagens de rua, contestava a esquerda e o status quo da intelectualidade nacional, conclamando todos para um grande pacto de união nacional, na busca de uma revolução social. Nas palavras dele: “reformas necessárias para a sobrevivência de um capitalismo democrático”.
É evidente que Glauber foi considerado um traidor por boa parte da elite intelectual, já que o processo de abertura política estava começando, e aquilo parecia inapropriado. Na cena que tenho gravada, ele berra:
“Nós somos mulatos e sertanejos, precisamos de reformas estruturais…
Vamos ver as coisas básicas: saúde, escola, hospital e o normal. Ter um pouco de amor pelo povo.
Por isso não gosto dos líderes burgueses que ficam num papo furado e nessa disputa pelo poder. Nada de autoritarismo e ninguém tem direito de falar em nome do povo. A Revolução Comunista já era e a Revolução Francesa já era. Vamos esquecer a Europa, vamos descobrir a feijoada, o carnaval, o frevo, as coisas nacionais.
Existe o Brasil. Os brasilianistas, estes estrangeiros que ficam falando mal do Brasil, estão superados pela historia. Nós somos negros, mulatos, índios. Nós somos um povo de nordestinos. Nossa cultura é a macumba e não a Ópera, de forma que vamos lá descobrir o Brasil. Jango já era, mas João Figueiredo poderá dar o salto triplo, inclusive integrando a esquerda à direita na feijoada, a grande jogada, o grande modelo.”
Naquele Brasil, que vivia ao som de “o Bêbado e a Equilibrista” na voz de Elis, tudo isso parecia o ocaso de um artista desesperado.
Glauber poderia ter sido um Bertolucci, mas preferiu seguir uma linha nada convencional, e insistir na construção de um cinema terceiro-mundista.
Essa cena que gravei ficou na minha memória, e sempre me incomodou. Hoje tenho noção clara de que Glauber sabia exatamente o que estava falando, e se antecipou - em muito - ao movimento das Diretas Já (1984) quando, em 1974, numa entrevista à revista Visão, elogiou o General Golbery do Couto e Silva, um dos mentores do governo militar: “O mais alto pensar da raça ao lado do professor Darcy (Ribeiro)”.
Glauber sabia que a única atitude importante era focar em resolver os problemas reais da sociedade. Isso, no entanto, parecia menos relevante para a maioria dos brasileiros, naquele fim de ditadura. A palavra de ordem era liberdade, como se liberdade fosse um conceito desprovido de lastro no mundo real.
Neste janeiro de 2022, preso em casa pela pandemia, resolvi assistir no Youtube ao filme “Terra em Transe” (link abaixo), que Glauber filmou em 1967, aos 29 anos de idade. Eu lembrava vagamente do filme, e de ter assistido uma reprise nesses cinemas minúsculos alternativos do meu Rio - Candido Mendes ou Joia. Na minha memória, o filme era instigante, confuso, e o ar condicionado do cinema - cubículo estava quebrado.
A minha memória estava completamente equivocada. “Terra em Transe”, como cinema, é uma obra-prima em todos os aspectos. Porém, o mais relevante é que apresenta um país tropical, em meio à uma disputa política que pode ser comparada com o momento que vivemos hoje, passados mais de 50 anos. Não sei se Glauber traduziu ali a nossa alma, ou se ele previu 2018 / 2022.
O personagem de Paulo Autran representa um político messiânico, que carrega um crucifixo numa mão e uma arma na outra, além de uma bandeira negra como o luto. Fala da grandeza de Deus e do seu sacrifício da vida pública.
O seu discurso:
⁃ só eu posso salvar Eldorado;
⁃ pela liberdade morremos;
⁃ não tenho ambições materiais;
⁃ se houver eleições ganha Vieira, se não tiver ganho eu;
⁃ tenho pureza de caráter;
⁃ sou um exemplo de virtude.
No entanto, o candidato tem um curriculum de traições:
⁃ extremista eleito deputado em 1920;
⁃ trai o movimento estudantil e se junta a um ditador;
⁃ trai o ditador;
⁃ trai o ditador seguinte;
⁃ faz campanha para comprar material bélico;
⁃ chega ao Senado.
Qualquer semelhança é mera coincidência?
Seria “Terra em Transe” premonitório?
Ou estamos presos no tempo, repetindo o passado como o “dia da marmota”?
Glauber deixa essa questão como um enigma quando, num plano de rosto, o personagem de Paulo Autran exibe um sorriso nervoso, cínico e tenso, exatamente como o de um certo Capitão.
Passados 50 anos, vivemos os mesmos dilemas, diálogos e problemas básicos. Continuamos, ainda, numa “Terra em Transe”.
PS: em memória de Moïse Kabamgabe, jovem congolês, que imigrou para o Brasil assim como todos meus avós na esperança de uma vida melhor.
Que beleza de texto, Fersen! Em outubro, tenho muita fé de que vamos nos libertar desse dia da marmota. Fico muito feliz que você, na posição profissional em que se encontra hoje, mantenha seu olhar atento, delicado e ao mesmo tempo afiado para as desigualdades do nosso País. E rezo todo dia para que existam mais fersens na Faria Lima...